ARTIGO ESPECIAL: Romanos 13 – As “autoridades superiores” e o cisma de 1962 na Europa oriental (Parte 3 – final)
Contribuído
por Cristão Antitípico.
Caso não tenha lido as
partes 1 e 2, sugiro que as leia antes de ler a parte 3, para se inteirar do
assunto. Para acessar as partes 1 e 2, clique abaixo:
A parte 1 desta série de artigos especiais mostrou que a liderança das Testemunhas de Jeová (TJs) fez uma mudança de entendimento em 1929 sobre as “autoridades superiores”, de Romanos capítulo 13. A parte 2 mostrou as consequências desta mudança nos ensinos das TJs. Neste artigo, irei discorrer sobre como as TJs foram orientadas por sua liderança a tratar os que se opunham ao conceito de 1929, bem como a forma em que ocorreu a posterior mudança de conceito em 1962.
Entre
1930-1961 – A “classe de Judas”
A revista A Sentinela de 1º de
fevereiro de 1935, p.37, fez acusações fortes.
9 . . . O “homem do pecado” ou classe de Judas, que uma vez esteve
na fila para o reino, desde então zombou e continua zombando da verdade de que
Deus tem uma organização na terra, e ainda insiste que as “autoridades superiores” (Rom. 13:1) são os governos desta terra e seus oficiais, que fazem parte da
grande organização de Satanás. Eles zombam da verdade de que os
“poderes superiores” mencionados pelas Escrituras são Jeová Deus e seu Rei
ungido.
10 Aqueles que dão atenção agora às palavras contrárias e que são
influenciados pelos esforços da classe do “homem do pecado” não resistirão à
prova neste dia, mas certamente fracassarão.
19 . . . “Todas as árvores” aqui devem necessariamente
incluir a classe “servo mau” ou “homem do pecado”, porque no momento do
cumprimento da parábola profética a classe “servo mau” como “árvores” agora se curva e
agita seus braços aos governantes visíveis terrestres
e declaram que eles são os “autoridades superiores”, e assim eles traem o Senhor Jesus, conforme
representado em seus irmãos, a classe do “servo fiel e sábio”. A classe do “homem do pecado” aqui se torna também a
classe de Judas, “o filho da perdição”.[1]
Há
inúmeras outras declarações neste mesmo patamar em A Sentinela de 1935 e ainda outras até o ano de 1961. Em resumo, o entendimento de 1929
sobre Romanos 13 era visto como um divisor de águas entre a verdade e a mentira;
entre a organização de Jeová e a organização de Satanás; entre a árvore
frutífera e a árvore imprestável; entre a salvação e a destruição; entre a
noiva de Cristo e Babilônia, a grande meretriz.
Essas
são palavras muito sérias, e elas nos mostram que não havia diplomacia nem
margem para opiniões divergentes – essa era a verdade absoluta e se você
discordasse, pertencia à organização de Satanás. Chamar aqueles que discordavam
da visão de 1929 de “classe de Judas”, isto é, de traidores de Cristo, é uma
acusação muito séria, e isso foi feito insistentemente e de forma difamatória entre
os anos de 1930 e 1950. Muitos irmãos acabaram abandonando a Sociedade Torre de Vigia (STV) e sendo
difamados por expressões como “filhos da destruição”, “classe de Judas”,
“escravos imprestáveis”, dentre outras tão fortes quanto.
Além
disso, foi feito um julgamento de que tais não seriam salvos. Uns 30 anos mais
tarde a própria Sociedade tomaria a posição da “classe de Judas”. Como de praxe,
nenhum pedido de perdão foi feito pela difamação, pelas calúnias e injúrias que
foram lançadas sobre os dissidentes durante os anos de 1929 e 1961.
O entendimento de 1929 sobre as “autoridades
superiores” de Romanos 13 era um divisor de águas, um ensino central da Sociedade que fazia a diferença entre o
escravo bom e o mau, o fiel e o infiel, Babilônia e a igreja, a salvação e a
destruição. Aqueles que discordavam do entendimento eram taxados de “servos
de Satanás” e insultados com o título “classe de Judas”. Em 1962 a Sociedade
Torre de Vigia passou a adotar o conceito que atribuíra à “classe de Judas”.
Nenhum pedido de perdão foi feito. |
Você
estava ciente dessas informações? A STV não conta o que realmente aconteceu.
Este não era um “entendimento pequeno”, conforme fica claro pela pesquisa nas
publicações. Antes, a importância do entendimento de 1929 se equipara à posição
sobre transfusões de sangue, desassociação, o escravo fiel e prudente, 1914 e
os tempos dos gentios e até mesmo à esperança do paraíso na Terra. Era uma
doutrina central, não periférica, da organização; era uma das doutrinas que
determinava as TJs como a igreja de Cristo; era um pilar da fé – ou você
aceitava isso, ou você era um traidor de Cristo.
Agora
pergunto: se o atual CG (Corpo Governante das Testemunhas de Jeová) anulasse o entendimento sobre os sete tempos dos
gentios, tipificados em Nabucodonosor, e que culminaram em 1914,[2] ou
mesmo se anulasse o entendimento sobre transfusões de sangue, você se
dissociaria das TJs? Falo de minha própria parte: eu me dissociaria
imediatamente, e conheço irmãos que fariam o mesmo. Pois bem,
foi exatamente isso que os irmãos na Romênia fizeram – e com toda a razão, eu
teria feito a mesma coisa. Agora responda: de quem foi a culpa pelo cisma de
1962? A resposta é somente uma: da própria Sociedade Torre de Vigia.
1962 – Trocando as fraldas
Então
chega o ano de 1962 e a liderança da organização começa a se aperceber de que uma
de suas doutrinas centrais e mais relevantes, determinantes e exclusivas, estava
errada. O que fazer? Poderia fazer como a cristandade herege e permanecer no
erro; ou poderia tomar uma ação que refletisse o protocolo de humildade.
Se
eu fosse o presidente da organização em 1962, teria convocado anciãos
representantes de congregações de todas as partes do mundo, teria pedido aos
anciãos que conversassem com os irmãos, abrissem o jogo para a congregação e
anotassem a resolução de cada congregação; tal resolução seria enviada à sede,
e então um extenso pedido de perdão aos irmãos seria feito.
Eu
também enviaria um pedido de perdão a todas as organizações da cristandade por
tê-las chamado de “classe de Judas” durante 30 anos porque discordavam da Sociedade
quanto a Romanos 13, sendo que estavam certas e a Sociedade, errada.
Em
seguida, eu estabeleceria um novo sistema organizacional a fim de impedir que o
mesmo tipo de erro se repetisse: ninguém mais poderia determinar doutrinas a
não ser a própria congregação por meio de resoluções orquestradas pelos anciãos
locais junto aos membros das congregações que são versados nas Escrituras. O
modelo unidirecional, de cima para baixo, da Sociedade para as congregações,
inquestionável e irrepreensível, tinha dado errado e deveria ser abolido, e o
erro de 1929 certamente nos ensinou isso. É o que eu teria feito. Estou certo
de que muitos irmãos aprovariam o novo sistema.
Mas
o que a organização fez? Ela fez o que sempre faz: trocou de entendimento como
quem troca de fraldas –, de forma absolutamente casual; não pediu perdão, não
desenvolveu humildade, não se desfez de sua autoridade, não se tornou mais
diplomática e menos dogmática; ao contrário, aumentou seu poder; não se
retratou, causou um grande cisma e jogou a culpa disso em quem não aceitou a
mudança, exigindo humildade dos outros, não de si mesma.
A
revista A Sentinela de 1962 em inglês, (em português: 15 de junho de
1963, p. 360) trouxe o artigo intitulado: Sujeição às “Autoridades Superiores”
— Por Quê?, onde foi feita uma exposição erudita
sobre os detalhes e o sentido do texto. Palavras em grego foram analisadas, o
contexto histórico e a intertextualidade também. O artigo explicou bem o novo
entendimento, mas ficou por isso mesmo.
Para
você entender porque afirmo que o entendimento foi alterado de forma casual,
imagine que neste mesmo dia você vá à reunião para o estudo de A Sentinela e
o artigo tenha o tema: “Por que podemos aceitar transfusões de sangue?” Então
o estudo apresenta argumentos para a tese de que a lei de Atos 15:29 não se
aplica ao uso medicinal do sangue. E aí. . .
o estudo termina e é isso. Nada mais é dito. Você vai para casa e está
tudo normal.
Como
você reagiria? Pois bem, foi exatamente assim que muitos irmãos reagiram na
Romênia em 1962 – o paralelo com a questão do sangue é equivalente. Em várias
partes do mundo, irmãos haviam sido executados e presos por causa do
entendimento de 1929, e em 1962 foi anulado. Isso fez com que muitos irmãos se sentissem
traídos e enganados pela STV, e com toda a razão. Afinal, eles foram presos por
um erro da liderança da organização. Essa é uma bandeira vermelha e deveria nos
ensinar algo seriíssimo: não podemos confiar nas decisões da liderança da Sociedade
Torre de Vigia.
O
resultado disso foi que mais de 5 mil irmãos na Romênia se dissociaram da
Sociedade. Esse grupo ainda retém todas as crenças das TJs, incluindo o
entendimento de 1929 sobre as “autoridades superiores” como sendo Jeová e
Jesus. Eles rejeitam transfusões de sangue, pregam de casa em casa e não fazem
parte do mundo. Segundo o pouco que pude conversar com um membro do grupo,
entretanto, eles são bastante fundamentalistas e também cometem exageros. Eles
proíbem o uso de maquiagem e são contra a caça de animais.
Conclusão
Eu
admito que, embora ache muito plausível que Romanos 13 se refira às autoridades
civis, não excluo totalmente a ideia de que o entendimento de 1929 poderia
estar correto. Há bons argumentos usados em A Sentinela de 1929. Portanto,
eu não penso que esta discórdia transforme em hereges aqueles que ainda aceitam
o entendimento de 1929. Por que afirmo isso? Porque se aceitar o entendimento
de 1929 é heresia hoje, então era heresia em 1929, apenas a organização não
estava ciente disso. Reflita nos seguintes pontos:
· Será que é impossível que convivamos lado a lado por causa dessa
diferença?
· Afinal, não cremos todos nós que Jeová e Jesus são de fato aqueles aos quais devemos nossa obediência incondicional e acima de tudo?
· Não estamos de acordo, seja qual for nossa visão sobre Romanos 13, de
que os governos deste mundo não são dignos de nosso apoio e não agem como
ministros de Deus quando descumprem suas leis justas?
· Será que discordamos quanto ao fato de que nossa obediência aos governos
civis é relativa?
Todos
estamos de acordo nas respostas para estas perguntas.
O
que nos divide, portanto, são homens, corporações e suas regras extrabíblicas,
seus sistemas eclesiásticos e clericais, seu desejo de poder e de controle
sobre as nossas opiniões; sua crença de que são mais especiais perante Jeová em
relação aos demais cristãos.
A
finalidade do presente artigo é, além de trazer para sobre a mesa os eventos
como de fato ocorreram, (não apenas a fatia doce de um bolo amargo), que isso
elucide os irmãos sobre uma verdade essencial: não há ninguém designado por
Cristo para explicar a Bíblia ou para determinar regras e leis para os demais.
Não podemos obedecer “sem pensar duas vezes” à cada orientação da liderança
da STV. O erro sobre Romanos 13 e a divisão de 1962 provam isso.
Que
todo o cristão se revista da nova personalidade pela ação do espírito santo em
seu íntimo e passe a ver os demais como irmãos de fé, não como inimigos que
abandonaram seus líderes humanos. Famílias e amigos têm se separado porque um
dos membros passou a pensar diferente sobre uma determinada pessoa ou grupo de
pessoas – irmãos, sejamos maiores que isso! Somos servos do Senhor Jeová e
seguidores de Cristo – as autoridades superiores do universo. Que sejamos uma
fé, não uma religião; que sejamos uma fraternidade, não uma corporação. Que
sejamos servos de Jeová, não de homens. Nossa salvação depende de Cristo, não
de uma organização.
Quando
conseguirmos olhar além de corporações e enxergarmos servos de Jeová que
possuem suas próprias dores e dúvidas; quando focarmos nossa atenção apenas no
Senhor como único Salvador, sem mediadores humanos, estaremos novamente unidos,
mais próximos da mentalidade de Cristo e a ganharemos a aprovação de nosso Pai,
Jeová.
Notas:
[1] A Sentinela de 1º de abril, 1935, p. 104.
[2] Eu concordo com o entendimento de que Nabucodonosor é um tipo profético que representa todo o domínio gentio de “sete tempos”. Concordo que haja boa evidência de que tal profecia culminou em algum momento do século passado. Se foi exatamente em 1914, um pouco antes ou um pouco demais, isso não é relevante.
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