Alguns afirmam que uma parte da história da origem da humanidade foi eliminada por uma intervenção do Judaísmo patriarcal e também da Igreja Católica no Concílio de Trento, do século 16. Segundo essa versão, Adão teve duas mulheres – a primeira teria sido Lilith, e Eva teria surgido depois. Os proponentes dessa versão apresentam argumentos a favor de que Lilith tenha sido a primeira mulher de Adão, e que este suposto fato tenha sido removido da Bíblia. Vamos dar atenção a esses argumentos.
Existe base documental para a suposta historicidade de Lilith?
Documentos extrabíblicos
Segundo os historiadores,
o nome Lilith aparece em escritos sumérios no terceiro milênio antes de Cristo,
e na Epopeia de Gilgamés, do sétimo século antes de Cristo. Segundo o historiador
Rodolpho Bastos, que tem doutorado em história das religiões pela Universidade
Federal de Santa Catarina (UFSC), Brasil, existem variadas interpretações sobre Lilith,
as quais procedem da tradição sumério-acadiana, de cerca de seis mil anos antes
de Cristo. Conforme o especialista, Lilith era vista nesse período como um ser
do domínio espiritual associado ao submundo das trevas.[1] Nenhum
desses escritos mitológicos apresenta Lilith como um ser humano, muito menos como
a esposa do primeiro homem, Adão.
Por outro lado, a Bíblia apresenta Adão e sua esposa Eva como seres inteiramente humanos. Lemos em Gênesis 2:7: “E Jeová Deus formou o homem do pó do solo e soprou nas suas narinas o fôlego de vida, e o homem se tornou um ser vivente.” E ambos – o primeiro homem e a primeira mulher – são referidos como sendo seres de “carne”, e não espíritos. – Gênesis 2:24.
O primeiro escrito a falar de Lilith como sendo a primeira esposa de Adão foi o Alfabeto de Ben-Sira, uma ficção medieval com influências da comédia grega, produzido entre os séculos 8 e 10 depois de Cristo, que apresenta elementos fantasiosos, como a referida Lilith voando, transformando-se em um demônio e depois na serpente que enganou Eva. (O mesmo escrito de Ben-Sira fala do profeta Jeremias como tendo nascido já falante e com dentes!) Contrário a esse conto imaginário, a Bíblia mostra que a serpente era um animal criado por Jeová, que foi usado por um anjo que se rebelou contra Jeová e que se tornou Satanás, o Diabo. – Gênesis 3:1; Apocalipse 12:9.
O Concilio de
Trento
O 19.º Concílio
Ecumênico da Igreja Católica, reunido pelo Papa Paulo III, realizado de 1545
até 1563 na cidade de Trento, na Itália, teve por objetivo primário se opor à
reforma protestante de Martinho Lutero, e nada tinha que ver com esconder
textos para reforçar a submissão da mulher. A afirmação de que tal concílio eliminou
partes da história bíblica referentes à suposta Lilith é exposta como falsa
pelos documentos bíblicos anteriores a esse concílio – de fato, anteriores até mesmo ao nascimento de Cristo. A primeira tradução da Bíblia hebraica, a Septuaginta,
produzida provavelmente por volta do terceiro século antes de Cristo, não
menciona uma outra esposa de Adão, além de Eva. Essa ideia só aparece
tardiamente nos textos medievais, como estória fantasiosa.
A suposta contradição
entre os dois primeiros capítulos de Gênesis
Os proponentes
da suposta Lilith afirmam que há dois relatos da criação contraditórios, nos capítulos 1 e 2 de Gênesis. Vejamos o primeiro relato da criação da
humanidade em Gênesis 1:26 e 27: “Então
Deus disse: ‘Façamos o homem à nossa imagem, segundo a nossa semelhança, e que
eles tenham domínio sobre os peixes do mar, sobre as criaturas voadoras dos
céus, sobre os animais domésticos, sobre toda a terra e sobre todo animal
rasteiro que se move sobre a terra.’ E Deus criou o homem à sua imagem, à
imagem de Deus o criou; homem e mulher os criou.” Com base nesta passagem, interpretam
que o homem e a mulher foram criados juntos, ao mesmo tempo, do pó da
terra, num único ato. Por outro lado, Gênesis 2:7, já transcrito, descreve Adão
sendo criado sozinho, do pó da terra. E somente no versículo 18 Deus menciona seu
propósito de criar a mulher. Lemos nesse verso: “Então Jeová Deus disse: ‘Não é bom que o homem fique sozinho. Vou
fazer-lhe uma ajudadora, como complemento dele.’” Após isso, o relato declara: “Então
Javé Deus formou do solo todas as feras e todas as aves do céu. E as apresentou
ao homem para ver com que nome ele as chamaria: cada ser vivo levaria o nome
que o homem lhe desse.” (Gênesis 2:19, Bíblia Pastoral) Após isso, Deus
cria a mulher (Gênesis 2:21, 22). Isto parece apresentar os animais como tendo
sido criados depois do primeiro homem, ao passo que o capítulo 1 de Gênesis
apresenta os animais como tendo sido criados primeiro. Ademais, Gênesis 2:5
parece indicar que o primeiro homem foi criado antes de haver vegetação. Lemos
nesse texto: “Não havia ainda nenhuma planta do campo na terra, pois ainda
nenhuma erva do campo havia brotado; porque o Senhor Deus não fizera chover
sobre a terra, e também não havia homem para lavrar o solo.” (Almeida
Revista e Atualizada) Como entender essas aparentes discrepâncias?
Na realidade, o capítulo 1 de Gênesis apresenta um resumo geral da criação, ao passo que o capítulo 2 apresenta os detalhes. Isso é mui semelhante ao recurso editorial seguido por jornalistas, que fazem um resumo da notícia para os leitores no primeiro parágrafo para somente depois se aprofundarem nos pormenores. Assim, Gênesis 2:5 e 6 pormenoriza o terceiro dia criativo, descrito em linhas gerais em Gênesis 1:9-13.
Em Gênesis 2:19
o verbo “formar” encontra-se na forma verbal perfeita; mas, segundo alguns
hebraístas, pode ser traduzido como mais-que-perfeito. Dessa forma o texto
ficaria como na tradução Almeida Revista e Atualizada: “Havendo, pois, o
Senhor Deus formado”. Ou seja, uma vez que Deus já tinha formado os animais,
ele os trouxe a Adão. Outra possibilidade é apresentada pela Tradução do Novo
Mundo das Escrituras Sagradas (edição de 1986): “Ora, Jeová Deus estava formando.” Na nota de rodapé, a referida tradução
afirma: “Em questão de tempo, ainda era o sexto dia criativo. O verbo ‘formar’,
no imperfeito, denota aqui ação continuada, progressiva. Veja Ap 3C.”
Assim, o periódico A Sentinela, publicado pela mesma editora, explica
sobre isso:
Este texto parece indicar que mesmo após Jeová Deus criar Adão e antes de ter criado Eva, Ele continuou a criar animais inferiores e a levá-los a Adão para que este lhes desse nome. Não somente Adão, mas também Eva foram criados antes do fim do sexto dia criativo; portanto, estes animais também foram criados antes do início do sétimo dia, o dia em que Deus descansou quanto à criação.[2]
Na mesma esteira, a criação do homem e da mulher é apresentada primeiro em linhas gerais no capítulo 1 de Gênesis, e detalhado no capítulo 2. Não há nenhuma incoerência.
Existe uma sugestão
de uma possível Lilith em Gênesis 2:23?
Este verso declara:
“O homem disse então: ‘Esta, por fim,
é osso dos meus ossos e carne da minha carne. Ela será chamada ‘mulher’, porque
do homem foi tirada.’” Alguns entendem dessa declaração que existiria
uma mulher antes de Eva. No entanto, essa interpretação desconsidera o
contexto imediato, que mostra que Adão disse isso, não em relação a uma suposta
mulher anterior a Eva, mas sim em contraste com os animais irracionais, que existiam
como casais. Notamos isso claramente em Gênesis 2:20, que diz: “Assim o homem deu nome a todos os animais
domésticos, às criaturas voadoras dos céus e a todo animal selvagem; mas, para
o homem, não havia nenhuma ajudadora para o complementar.”
A única menção da palavra lilith encontra-se
em Isaías 34:14, e está no plural, indicando que não se tratava de uma
pessoa, mas sim de um coletivo de seres vivos, entre as criaturas existentes nas ruínas de Edom, sendo traduzida
como “criaturas noturnas” (Nova Versão Internacional) “animais noturnos”
(Almeida Corrigida Fiel) e “aves noturnas [“os curiangos”, nota]” (Tradução do Novo Mundo 2015).
Portanto, não há base documental nem
inferencial para a afirmação de que existiu outra esposa de Adão além de Eva.
Por que a
popularização de Lilith?
A partir da metade do século 20, na segunda onda do movimento feminista, que se estendeu até por volta do ano 2000, Lilith se tornou um dos símbolos representativos da mulher na pós-modernidade, na luta pelos direitos reprodutivos, pela legalização do aborto e nas discussões acerca da sexualidade. E, na terceira onda do movimento feminista, que se vale da sensualidade como forma de argumento de poder da mulher, a figura de Lilith se intensifica, tornando-se o símbolo máximo movimentos feministas. Pois, conforme o folclore, Lilith já no Éden exigiu a igualdade de direitos entre os sexos, sendo comumente associada à rebeldia e à liberdade sexual. O já citado historiador Rodolpho Bastos afirmou sobre isso:
Lilith é uma
das personagens mais controversas que existem na tradição judaica e cristã. Ela
está em voga há algumas décadas, principalmente por ser entendida pelo
movimento feminista como um ícone de insubmissão e subversão.[3]
Cuidado com
as fábulas!
Observe os textos abaixo:
“Mas rejeite as histórias falsas que
violam o que é santo, como as que são contadas por mulheres velhas. Por outro
lado, treine-se com a devoção a Deus por alvo.” – 1 Timóteo 4:7.
“E não prestem atenção a fábulas judaicas
e a mandamentos de homens que se desviam da verdade.” – Tito 1:14.
Assim, em vez de dar crédito a contos
fantasiosos e míticos, o bom senso nos leva a confiar no relato da criação com
teor histórico apresentado na Bíblia Sagrada.
Notas:
[1] CAPPI, Lis. Quem é Lilith? Pesquisador explica figura mítica que causa polêmica na web. Correio Braziliense. Postado em 25/02/2021, às 23:42; atualizado em 26/02/2021, às 12:16. Disponível em: < https://www.correiobraziliense.com.br/diversao-e-arte/2021/02/4908840-quem-e-lilith--pesquisador-explica-figura-mitica-que-causa-polemica-na-web.html>.
[2] 15/08/63, p. 511. Perguntas dos Leitores. Qual é o significado de Gênesis 2:19?
[3] CAPPI, Lis. Quem é Lilith? Pesquisador explica figura mítica que causa polêmica na web. Correio Braziliense. Postado em 25/02/2021, às 23:42; atualizado em 26/02/2021, às 12:16. Disponível em: < https://www.correiobraziliense.com.br/diversao-e-arte/2021/02/4908840-quem-e-lilith--pesquisador-explica-figura-mitica-que-causa-polemica-na-web.html>.
A menos que haja uma indicação, todas as citações bíblicas são da Tradução do Novo Mundo da Bíblia Sagrada, publicada pelas Testemunhas de Jeová.
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