Fonte: Tradução do Arcebispo Newcome.
Os manuscritos mais
antigos do Novo Testamento estão no estilo de escrita uncial, no qual as
palavras são escritas em letras maiúsculas.
Souza (p. 101)
comentou sobre isso:
Por volta do ano 400 d.C., Jerônimo traduziu a Bíblia
(Velho e Novo Testamentos) para o latim e não teve problemas na tradução de
João 1:1, visto que o latim não utilizava o artigo definido e muito menos o
indefinido. Ele não deve ter tido também problemas em decidir quando usar Deus,
ou deus, porque, na época, tanto o grego
como o latim eram escritos utilizando-se apenas letras maiúsculas. (Negrito acrescentado.) [1]
Assim, nesses
manuscritos João 1:1 encontra-se escrito com todas as letras em maiúsculo,
conforme a foto abaixo.
A parte sublinhada
reza: “E DEUS ERA O LÓGOS.” As traduções da Bíblia vertem essa parte final de
maneiras bem diversificadas. Ao passo que muitas traduções vertem por “o Verbo [ou:
a Palavra] era Deus”, outras optam por uma tradução diferente. Veja alguns
exemplos:
“e a palavra era um deus.” – The New
Testament, in An Improved Version, Upon the Basis of Archbishop Newcome’s New
Translation: With a Corrected Text. Londres. 1808.
“e um deus era a Palavra.” – The
Emphatic Diaglott, de Benjamin Wilson. Nova Iorque e Londres. 1864.
“e a Palavra era um deus.” – La
Sainte Bible, Segond-Oltramare, Genebra e Paris. 1879.
“e a Palavra era um ser divino.” – La
Bible du Centenaire, Société Biblique de Paris. 1928.
“e a Palavra era divina.” – The
Bible—An American Translation, de J. M. P. Smith e E. J. Goodspeed,
Chicago. 1935.
“e a Palavra era um deus.” – Tradução
do Novo Mundo das Escrituras Gregas Cristãs, Brooklyn, Nova Iorque, em
inglês. 1950.
“e um deus (ou: da espécie divina) era a
Palavra.” – Das Evangelium nach Johannes, de Siegfried Schulz,
Göttingen, Alemanha. 1975.
“e um deus era o Lógos.” – Das
Evangelium nach Johannes, de Jürgen Becker, Würzburg, Alemanha. 1979.
Por que essa diferença
na tradução da parte final de João 1:1?
Lendo o versículo inteiro
podemos deduzir alguns dos motivos. Veja abaixo a tradução literal do texto grego:
NO PRINCÍPIO ERA O LÓGOS,
E O LÓGOS ESTAVA COM O DEUS, E DEUS ERA O LÓGOS.
Observe que a
palavra “DEUS” ocorre duas vezes. Primeiro, refere-se Àquele com quem estava o Lógos. Segundo,
refere-se ao Lógos (o “Verbo” ou a “Palavra”; no caso, Jesus em sua existência pré-humana). Note, também, que o substantivo “DEUS”, quando aplicado
Àquele com quem o Lógos estava, é precedido do artigo definido (“o”), ao passo
que o substantivo “DEUS”, quando se refere ao Lógos, é anartro (não possui
artigo).
Isto torna a
primeira ocorrência da palavra “DEUS” um substantivo definido. Já no caso do
substantivo “DEUS” com referência ao Lógos, somente o contexto pode determinar
se é definido ou não. E o que podemos concluir do contexto?
O artigo “O que determina que a parte final João 1:1 possa ser traduzida ‘um deus’?” explicou:
Se a palavra “deus” [sem o artigo] fosse um
substantivo definido, estaria implícito o artigo definido “o” antes de “deus”,
dando o seguinte sentido: “O Deus era o Lógos [Verbo].”
No entanto, essa interpretação entraria em conflito
com a frase anterior, que afirma literalmente:
ὁ λόγος ἦν πρὸς τὸν θεόν
ho lógos ên pròs tòn theón
O lógos estava com o Deus
Visto que o Lógos (Verbo) estava com “O” Deus, ele
não poderia ser “O” Deus com quem ele estava. Uma pessoa que está com alguém
não é a mesma pessoa com quem ela está!
Inclusive, tal interpretação entraria em conflito
com a própria doutrina da Trindade, a qual apregoa a separação de Pessoas. Ou
seja, a Trindade não afirma que o Pai e o Filho são a mesma Pessoa, e sim que
são duas pessoas distintas que formam (juntos com o “Espírito
Santo”) um só Deus. Porém, entender que o Verbo é “O” Deus com quem ele estava
seria afirmar que o Verbo é o Pai, algo que nem a Trindade nem a Bíblia
afirmam.
Em razão disso,
muitos tradutores entendem que o substantivo “DEUS” com relação ao Lógos
não é um substantivo definido, podendo ser traduzido “um deus” nas línguas que
possuem o artigo indefinido, ou simplesmente “deus”, tendo função adjetiva, indicando
a qualidade ou natureza do Lógos (ele é divino, tem qualidade divina) e não
identificando a sua pessoa.
Como bem coloca Souza:
Outra
maneira de interpretar-se a ausência do artigo em theos (θεός) é considerando-o como um
predicativo substantivo com uma função adjetiva. Neste caso, theos (θεός) não seria um substantivo
determinativo, mas uma qualidade atribuída à Palavra (ho logos - ὁ λόγος), além do
que existe uma tendência entre os gramáticos em aceitar predicativos adjetivos
como anartros [sem artigo]. – P. 103.
Inclusive, a
primeira Bíblia de que se tem registro que traduziu João 1:1 por “o Verbo era
um deus” é a versão Copta, produzida
por volta do ano 200 da Era Cristã.
Conforme explica
Souza (p. 102), o uso de iniciais maiúsculas e de artigo indefinido (“um”) na
tradução da Bíblia é um critério do entendimento do tradutor, e não fere
nenhuma regra gramatical grega. Observe suas palavras sobre isso:
[…] a inserção ou eliminação de artigos, tanto
definidos como indefinidos, ou algumas palavras
serem iniciadas com maiúsculas e outras não, nem sempre são uma imposição da língua para a qual
é feita a tradução, mas uma adaptação ao
conhecimento de mundo existente no ambiente cognitivo do tradutor. (Negrito
acrescentado.)[2]
Com relação à regra
de Colwell, de 1933, citada por alguns como suposto indicativo de que o
substantivo “DEUS” aplicado ao Lógos é definido, Souza explica:
Independente da validade ou não da regra, ela nada
adiciona sobre se o predicativo é definido ou não. O que ela afirma é que se o
predicativo for
definido, dispensará o
artigo. Cabe ao leitor identificar, ou assumir, se se trata de um predicativo
definido ou não. – P. 103.
Richard A. Young, apesar
de adotar a tradução “a Palavra era Deus”, honestamente reconhece esta
limitação da regra de Colwell, ao afirmar:
O problema ao aplicar-se a regra de Colwell está em
determinar quando o predicativo nominativo é definido. A regra, por ela mesma,
não estabelece que um substantivo é definido, uma observação algumas vezes
ignorada quando aplicada a João 1:1. (1994, p. 65)[3]
Na mesma senda, Jason
David BeDuhn acrescenta:
A “regra”
nada faz para auxiliar na determinação de se um substantivo é, ou não é, definido.
Mesmo se a “regra de Colwell” fosse verdadeira, ela no melhor dos casos permite
admitir a possibilidade de que um predicativo nominativo sem o artigo, anterior
ao verbo, seja definido. Ela não consegue provar que a palavra é definida. Mas
visto que a regra não fornece meios de distinguir entre um predicativo
nominativo definido ou indefinido anteposto ao verbo, muitos erros têm sido
cometidos ao assumir-se todos os predicativos nominativos pré-verbos como
definidos. (2003, p. 63.)
Para um entendimento da regra de
Colwell e de suas implicações, veja os artigos:
Portanto, é perfeitamente cabível em
sentido gramatical e contextual que a parte final de João 1:1 seja traduzida “o
Lógos [a Palavra, ou o Verbo] era um deus” ou “era deus”.
Notas:
[1] SOUZA. Marcos. ERA O VERBO UM DEUS? – ANÁLISE DE JOÃO 1:1 A PARTIR DA TEORIA DA RELEVÂNCIA. Veja também o artigo “Por
que a Tradução do Novo Mundo coloca espírito santo com iniciais minúsculas?”
[2] Ibidem p. 102.
[3] Apud Souza, p. 103.
REFERÊNCIAS
BeDUHN, Jason David. Truth in translation: accuracy and bias in English translations of the New
Testament. Lanham: University Press of America, 2003.
SOUZA.
Marcos. ERA
O VERBO UM DEUS? – ANÁLISE DE JOÃO 1:1 A PARTIR DA TEORIA DA RELEVÂNCIA. Disponível em:< http://www.portaldeperiodicos.unisul.br/index.php/Linguagem_Discurso/article/view/281/295>.
YOUNG, Richard A. Intermediate New Testament Greek: a linguistic and exegetical approach.
Nashville: Broadman & Homan, 1994.
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